quarta-feira, 12 de maio de 2010


Trecho de Nada na Língua é por acaso: ciência e senso comum na educação em língua materna. Artigo de Marcos Bagno na revista Presença Pedagógica em setembro de 2006.


"...em contraposição à noção de "erro", e à "tradição da queixa" derivada dela, a ciência lingüística oferece os conceitos de variação e mudança. Enquanto a Gramática Tradicional tenta definir a "língua" como uma entidade abstrata e homogênea, a Lingüística concebe a língua como uma realidade intrinsecamente heterogênea, variável, mutante, em estreito vínculo com a realidade social e com os usos que dela fazem os seus falantes. Uma sociedade extremamente dinâmica e multifacetada só pode apresentar uma língua igualmente dinâmica e multifacetada.

Ao contrário da Gramática Tradicional, que afirma que existe apenas uma forma certa de dizer as coisas, a Lingüística demonstra que todas as formas de expressão verbal têm organização gramatical, seguem regras e têm uma lógica lingüística perfeitamente demonstrável. Ou seja: nada na língua é por acaso.

Por exemplo: para os falantes urbanos escolarizados, pronúncias como broco, ingrês, chicrete, pranta etc. são feias, erradas e toscas. Essa avaliação se prende essencialmente ao fato dessas pronúncias caracterizarem falantes socialmente desprestigiados (analfabetos, pobres, moradores da zona rural etc.). No entanto, a transformação do L em R nos encontros consonantais ocorreu amplamente na história da língua portuguesa. Muitas palavras que hoje têm um R apresentavam um L na origem:

LATIM PORTG.
blandu- brando
clavu- cravo
duplu- dobro
flaccu- fraco
fluxu- frouxo
obligare obrigar
placere- prazer
plicare pregar
plumbu- prumo

Assim, o suposto "erro" é na verdade perfeitamente explicável: trata-se do prosseguimento de uma tendência muito antiga no português (e em outras línguas) que os falantes rurais ou não-escolarizados levam adiante. Esse fenômeno tem até um nome técnico na lingüística histórica: rotacismo.
Esse é só um mínimo exemplo de que tudo o que é chamado de "erro" tem uma explicação científica, tem uma razão de ser, que pode ser de ordem fonética, semântica, sintática, pragmática, discursiva, cognitiva etc. Falar em "erro" na língua, dentro do ambiente pedagógico, é negar o valor das teorias científicas e da busca de explicações racionais para os fenômenos que nos cercam..."

Assunto bem discutido nas aulas de Variação e Mudança Linguística, Grámatica I, Morfologia, Sintaxe. Leitura e Produção de Texto e até nas aulas de Literatura... rs.
Mas calma lá, sem extremos!

2 comentários:

  1. Certa feita um rapaz, no ponto de ônibus, puxou assunto:

    -Opa, posso ti contá uma história?

    E eu disse que sim. Então ele desembuchou:

    Intão, eu era muito próbe, mas aí comecei a trabaiá de pedero, eu era muito bom em ponhá ajulezo, mas aí eu num tinha resísto e ninguém me deixô mais trabaiá. Fui pras cidade das criança e fui brincá num tefelérico, di lá dicima eu vi um mindingo, cuberto com um ededron e deitado incima dos parlepipos. Ele tava cumeno um lanche, não sei se era pão cum mortandela ou cum quejunto e preso, mas parecia q tava bom. E ainda bebia um iorgute. Eu vi porque fui armarrá os cardaço e olhei pra baxo. Me deu uma fome. Lembrei que não trabaiava mais e não tinha mais tique-refeição, então comecei a tremê (toda vez que me dá fome me dá um tiqueti-nervoso e não paro de tremê). Ah como eu queria um arrôis com salchicha, ia punha tudo na malmita e cumê só di galfo.

    Eu fiquei com dó do cabloco e falei que lhe pagaria um lanche. Então ele asseverou:

    -só si fô do mécdôniu!

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  2. esse é uma questão bem interessante... e de certa forma traduz uma dinâmica corrente na vida em sociedade.

    aqueles que detem status e legitimidade ditam o que é certo, criam regras, almejam "estabilizar e ordenar o mundo". inventam uma tradição e buscam conservá-la. há toda uma cartilha que devemos seguir e com isso afastam o que é diferente, o que não se encaixa, como algo menor ou errado... tanto que às vezes torna-se difícil perceber a diversidade e a mudança como algo positivo, inerente ao ser humano e justamente o que nos faz ser o que somos hoje (e o que seremos amanhã).

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