sábado, 27 de março de 2010

eu, eu mesmo e Drummond.


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se dia mais: meu amor
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficastes sozinho, a luz apagou-se.
Mas na sombra seus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer
E nada esperas de seus amigos.

Pouco importa velha a velhice, que é a velhice?
Teu ombro suporta o mundo
e ele pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as brigas dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados)eu morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mestificação.

Os Ombros Suportam o Mundo

Carlos Drummond de Andrade.

Engraçado como nos encaixamos completamente com certo autores, compositores e afins!
Drummond, nesse momento, calhou perfeitamente!

... e o calor araraquarense continua.

terça-feira, 23 de março de 2010

Desvencilhar!



E é com João Cabral de Melo Neto que faço deste espaço um grito, um murmúrio, um desabafo!
"(...) O amor roeu a minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia os lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina no largo, com os primos que tudo sabiam sobre os passarinhos, sobre mulheres, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu o meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas que eu desesperava por não saber falar delas em verso (...)".


Trecho de Os Três Mal-Amados.