Trecho de Nada na Língua é por acaso: ciência e senso comum na educação em língua materna. Artigo de Marcos Bagno na revista Presença Pedagógica em setembro de 2006.
"...em contraposição à noção de "erro", e à "tradição da queixa" derivada dela, a ciência lingüística oferece os conceitos de variação e mudança. Enquanto a Gramática Tradicional tenta definir a "língua" como uma entidade abstrata e homogênea, a Lingüística concebe a língua como uma realidade intrinsecamente heterogênea, variável, mutante, em estreito vínculo com a realidade social e com os usos que dela fazem os seus falantes. Uma sociedade extremamente dinâmica e multifacetada só pode apresentar uma língua igualmente dinâmica e multifacetada.
Ao contrário da Gramática Tradicional, que afirma que existe apenas uma forma certa de dizer as coisas, a Lingüística demonstra que todas as formas de expressão verbal têm organização gramatical, seguem regras e têm uma lógica lingüística perfeitamente demonstrável. Ou seja: nada na língua é por acaso.
Por exemplo: para os falantes urbanos escolarizados, pronúncias como broco, ingrês, chicrete, pranta etc. são feias, erradas e toscas. Essa avaliação se prende essencialmente ao fato dessas pronúncias caracterizarem falantes socialmente desprestigiados (analfabetos, pobres, moradores da zona rural etc.). No entanto, a transformação do L em R nos encontros consonantais ocorreu amplamente na história da língua portuguesa. Muitas palavras que hoje têm um R apresentavam um L na origem:
LATIM PORTG.
blandu- brando
clavu- cravo
duplu- dobro
flaccu- fraco
fluxu- frouxo
obligare obrigar
placere- prazer
plicare pregar
plumbu- prumo
Assim, o suposto "erro" é na verdade perfeitamente explicável: trata-se do prosseguimento de uma tendência muito antiga no português (e em outras línguas) que os falantes rurais ou não-escolarizados levam adiante. Esse fenômeno tem até um nome técnico na lingüística histórica: rotacismo.
Esse é só um mínimo exemplo de que tudo o que é chamado de "erro" tem uma explicação científica, tem uma razão de ser, que pode ser de ordem fonética, semântica, sintática, pragmática, discursiva, cognitiva etc. Falar em "erro" na língua, dentro do ambiente pedagógico, é negar o valor das teorias científicas e da busca de explicações racionais para os fenômenos que nos cercam..."
Assunto bem discutido nas aulas de Variação e Mudança Linguística, Grámatica I, Morfologia, Sintaxe. Leitura e Produção de Texto e até nas aulas de Literatura... rs.
Mas calma lá, sem extremos!